José Mário Galdino da Silva
“Quero saber como Deus criou este mundo”, dizia Albert Einstein em seu livro “Como Vejo o Mundo”.Essa é uma frase célebre do físico ganhador do prêmio Nobel de física de 1921. Essa pergunta já foi feita por muitas pessoas nas mais diversas culturas e épocas. É uma curiosidade natural e perfeitamente compreensível. O ser humano é esse ser curioso que deseja saber das coisas. O credo apostólico afirma: “Creio em Deus Pai todo Poderoso, criador dos céus e da terra”. Para os cristãos da época da composição desse credo as dúvidas talvez não fossem tão grandes, afinal o mundo não dispunha de tantas informações como temos hoje. Na medida em que iam aparecendo os novos questionamentos, novos credos foram aparecendo e sempre que surgia uma nova polêmica sobre a fé cristã havia a necessidade de se reformular o credo anterior na tentativa de responder aos novos questionamentos. As afirmações que os cristãos fazem a respeito de determinadas doutrinas, com o passar do tempo passam por novas reformulações, pois as respostas já não satisfazem àquela geração. A doutrina bíblica sobre a criação é um desses temas que se recusam a encontrar repouso. Há sempre uma tensão a ser resolvida, principalmente por parte dos teólogos. Eduardo Arens entende que: “É ingênua e fora de lugar toda discussão sobre a maneira como Deus teria feito os seres humanos, baseando-se em Gênesis: não era essa sua mensagem, mas o fato de que é Deus, e nenhum outro, que está no “ponto inicial”. Explicarnos o como se deu é uma questão que compete aos cientistas não é assunto de fé teológica” (ARENS, 2007, p. 60).
Normalmente quando começamos a ler a Bíblia Sagrada começamos pelo livro de Gênesis, por causa da ordem canônica, seja na Torá, seja no cânon ocidental. Se não tivermos uma orientação adequada sobre a interpretação dos primeiros onze capítulos poderemos fazer uma série de questionamentos principalmente se olharmos para a Bíblia com os olhos da Ciência moderna. Um desses problemas poderá surgir-nos na leitura dos dois relatos da criação encontrados no capítulo um e dois. De acordo com as informações que a Ciência apresenta hoje, é natural que sintamos dificuldade em conciliar as duas fontes de informação. Se o leitor soubesse sobre o gênero literário e as culturas que influenciaram os primeiros capítulos de Gênesis, teria uma melhor compreensão, e não seria necessário fazer um paralelo entre Ciência e Bíblia. É verdade que Gênesis capítulo um e dois é um dos textos mais discutidos das Escrituras Sagradas. Alguns olham para o texto com descrença, pelo fato dos textos não se harmonizarem com o que a Ciência afirma sobre o início do universo. Outros têm medo de questionar e acabam deixando de interpretar corretamente, às vezes por não terem como se aprofundar no assunto ou por não conhecerem sobre o gênero literário que estão lendo.
Analisando relatos antigos de outras culturas e as teorias das fontes, podemos perceber que o livro de Gênesis, por exemplo, foi composto a partir de textos de várias épocas e seu autorcompilador2 se utilizou dos recursos literários que dispunha para compor essas narrativas. John B. Gabel (2003, p. 17), faz a seguinte pergunta sobre a Bíblia como literatura: “Que significa ler a Bíblia como literatura?” responde ele:
Considerar a Bíblia como consideraríamos qualquer outro livro: um produto da mente humana. Nessa concepção, a Bíblia é um conjunto de escritos produzidos por pessoas reais que viveram em épocas históricas concretas. Como todos os outros autores, essas pessoas usaram suas línguas nativas e as formas literárias então disponíveis para a auto-expressão, criando, no processo, um material que pode ser lido e apreciado nas mesmas condições que se aplicam à literatura em geral, onde quer que seja encontrada. Não há um conflito necessário entre essa concepção e a concepção religiosa tradicional, que afirma ter sido a Bíblia escrita por inspiração direta de deus e dada aos seres humanos para servir-lhes de guia da fé e da conduta. Mas há uma clara diferença em termos de requisitos e objetivos. Ler a Bíblia como literatura não deve causar desconforto a adeptos da concepção religiosa (embora possa parecer um pouco estranho no início), e nela exige das muitas pessoas que, por suas próprias razões, têm uma visão cética ou não-comprometida da Bíblia.
Quaisquer que sejam as nossas crenças religiosas, a Bíblia é o legado comum de todos nós, e deveríamos ser capazes de estudá-la, até certo ponto, sem entrar em controvérsia religiosa. Mas tarde — em outro contexto —, quem preferir poderá voltar a considerar a Bíblia um repositório da verdade religiosa. O importante é saber o que se faz, explicitar a nossa escolha e segui-la de modo consistente. Aqui, vamos examinar um grupo de textos literários como textos literários.
Qualquer pessoa poderá se posicionar em relação à Bíblia da forma que melhor lhe convier, não resta dúvida. Mas é possível desfrutar das duas coisas ao mesmo tempo: deleitar-se em uma literatura espetacular do oriente médio, mas que fala aos nossos corações também de maneira espetacular. É um livro de literatura não resta dúvida, mas é um livro vivo. Fala das coisas espirituais e se interessa pela humanidade. É a própria palavra de Deus.
Nossa intenção é levantar hipóteses interpretativas em Gênesis capítulo um e dois a partir do gênero literário utilizado. Esperamos que as considerações apresentada nos ajude a uma melhor compreensão desses dois textos de difícil interpretação. Assim desejamos dialogar com os cristãos interessados nas explicações referentes, como é o caso do tema a que nos propomos pesquisar. Nossa pesquisa será acadêmica, pois a academia tem a função de buscar através de seus membros e principalmente daqueles que têm o dom de mestre (1 Co 12:27-28; Ef 4:11) às explicações corretas sobre as áreas a que se propõe pesquisar. É fato que a Ciência tem produzido muitas respostas para elucidar a origem da criação, mas alguns cristãos alegam que a Bíblia, por ser um livro de revelação não deve ser questionada, mesmo que isso deixe alguns pontos sem uma explicação plausível. A academia deve sempre que possível apresentar respostas à questão da criação, principalmente com o intuito de atingir pessoas ávidas pelo conhecimento. A academia só tem a ganhar quando apresenta explicação que alcança aqueles que esperam respostas mais convincentes quanto a determinadas questões difíceis, como é o caso dos dois relatos da criação.
É importante apresentar aos cristãos de nossos dias uma leitura mais coerente, que justifique a partir dos recursos literários da época em que foram escritos os dois relatos da criação em Gênesis capítulo um e dois. O que levaria a uma leitura mais agradável e consciente ao invés de uma leitura árida, sem nexo ou até mesmo ingênua, pautada apenas pela fé. Não que a leitura bíblica não precise do elemento fé como compreensão de alguns acontecimentos, afinal, a Bíblia é um livro de espiritualidade, e não um livro comum, mas também é um livro que narra fatos, apresenta poesias, histórias, crônicas e etc. Portanto, o leitor bíblico deve ler cada gênero literário da Bíblia observando suas características particulares. Ler e saber o que se está lendo faz toda a diferença.
Alguns círculos judaicos e cristãos vêem o livro de Gênesis como uma narrativa com a intenção de relatar eventos e personagens de um passado distante. Gunkel citado por Raymond H. Dillard defende que Gênesis é composto a partir de uma saga. Coats também citado pelo mesmo autor define saga como: “uma narrativa longa, prosaica, tradicional, que tem uma estrutura episódica desenvolvida em torno de temas ou objetos estereotipados [...] os episódios narram feitos ou virtudes do passado à medida que eles contribuem para a composição do discurso do atual narrador” (DILLARD, 2006, p. 50).
Outra definição para saga é encontrado no mesmo livro de Raymond, fazendo citação de Morberly “tais sagas tendem a consistir em grande medida de justaposições não-históricas sobre um núcleo possivelmente histórico” (p. 36). Quando fala sobre a arte literária em Gênesis diz ele “os eruditos citam as histórias desse livro com os principais exemplos de uma sofisticada prosa literária na Bíblia (DILLARD, 2006, p. 50). Outros gêneros foram propostos para definir a natureza literária do Gênesis, pelo menos em parte, a saber: mito, lendas, fábulas e etiologias. Na verdade Gênesis é um livro de fundamentos. É uma introdução à Lei Mosaica. Gênesis é a narrativa da história da redenção.
A identificação do gênero de Gênesis 1—11 é difícil por causa de sua singularidade. Nenhum desses relatos pertence ao gênero “mito”. Mas nenhum deles é “história” no sentido moderno de testemunho ocular, relato objetivo. Antes, transmitem verdades teológicas acerca de eventos retratados principalmente em estilo literário simbólico e pictórico. Isso não significa que Gênesis 1 11 contenha inverdades históricas. Tal conclusão só seria procedente se o material alegasse conter descrições objetivas. Conclui-se da discussão acima que tal não era seu intento. Por um outro lado é errada a idéia de que as verdades ensinadas nesses capítulos não têm base objetiva. Verdades fundamentais são declaradas: criação de tudo por obra de Deus, intervenção divina especial na origem do primeiro homem e da primeira mulher, a unidade da raça humana, a bondade prístina do mundo criado, inclusive da humanidade, a entrada do pecado pela desobediência do primeiro casal, a disseminação generalizada do pecado após esse ato inicial de desobediência. Essas verdades são todas baseadas em fatos (LASOR, 1999, p. 22).
Não é nossa intenção abrir um diálogo entre Bíblia e Ciência. Essa pesquisa se restringe a analisar apenas dois capítulos do livro de Gênesis na Bíblia Sagrada. É possível encontrarmos duas narrativas para relatar a criação, uma que vai de (Gn 1:1—2:3a) a outra narrativa vai de (Gn 2:4b-24). É nosso interesse comparar os dois relatos e partir para uma possível solução quanto às diferenças existentes entre eles e pesquisar em que gênero literário esses relatos se enquadram. Uma outra questão é que o texto que dá base para a pesquisa apresenta indícios de que as narrativas não são narrativas históricas como conhecemos nos dias de hoje, mas uma literatura de uma época e de uma cultura distante.
Gênesis cobre um período imensamente longo de tempo, mas longo talvez do que o conjunto do restante da Bíblia. Começa no remoto passado da criação, um evento cuja data absoluta não podemos nem mesmo especular, e atravessa milênios até alcançar Abraão no final do capítulo 11 (DILLARD, 2006, p. 37).
Um leitor curioso quando lê os dois primeiros capítulos de Gênesis poderá fazer naturalmente as seguintes perguntas: como se deu a escrita? Quem ditou? Quem escreveu? Deus revelou a um homem ou foi uma compilação de narrativas? É possível anteciparmos algumas hipóteses partindo da análise histórica dos povos que compunham os escritos bíblicos e das composições literárias da região.
Primeira hipótese: Na época da criação não havia escrita, o que só veio a acontecer cerca de 4.000 anos antes de Cristo. Se não havia escrita, também não haveria os recursos poéticos existentes nas narrativas. Os textos bíblicos apresentam tipos de literaturas diversas, tais como: poesias, provérbios, parábolas, apocalipses, narrativas e outros. Para cada um desses gêneros o leitor-intérprete deverá usar uma lente específica. Um outro fator a ser considerado é que na cultura de Israel à época dos acontecimentos ou relatos mais antigos, ainda não era utilizada a escrita, havia a tradição oral, ou seja, cada geração ia passando as informações oralmente. Sobre esse assunto diz Eduardo Arens (2007, p. 51) :
Pois bem, se tomarmos consciência de que alguns acontecimentos foram relatados oralmente durante muito tempo, de uma geração a outra, antes de serem fixados por escrito, e de que cada um que o relatou e cada um que o escutou o interpretou segundo “seu ponto de vista”, segundo sua maneira de compreendê-lo, segundo seu nível cultural, segundo suas experiências de vida, podemos ter uma idéia das mudanças que podia sofrer o relato através do tempo.
Segunda hipótese: é um trecho compilado através da tradição oral do oriente médio. “É notório que em Israel não se encontraram textos escritos antes do séc. VIII [a.C], exceto de algumas anotações cananéias em cerâmica (óstraco, selos), ou tabuinhas como o pequeno calendário de Gezer (séc. X)” (Arens. pp. 67 68).
Terceira hipótese: os argumentos apresentados anteriormente quanto à estrutura literária da narrativa nos dão indícios que a narrativa foi uma composição muito bem elaborada e que inclusive há trechos em forma de poesia como em (Gn 1:6 e 2:23). A pesquisa dar-se-á então a partir da literatura Teológica. As matérias teológicas que darão suporte ao projeto serão: Introdução ao Antigo Testamento, Teologia do Antigo Testamento, Teologia Sistemática, Hermenêutica, História de Israel e Literaturas do Oriente Médio. “A análise de Folkkelman de Gênesis 11:1-9 mostra em pequena escala o que é verdadeiro numa escala maior: Gênesis é uma composição literária engenhosamente construída” (DILLARD, 2006, p. 51).
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