A operação Monte Carlo, recentemente realizada pela Polícia Federal, foi responsável por trazer à tona evidências consistentes sobre como a revista Veja conseguiu organizar nos últimos anos um modus operandi eficiente, mas nada ético, que lhe rendeu uma série de furos jornalísticos.
Duzentas ligações telefônicas, legalmente gravadas pela PF, mostram uma relação tortuosa, baseada em interesses de cunho político, econômico e editorial, entre o editor-chefe e diretor da sucursal de Brasília da Veja, Policarpo Junior – com a suposta anuência de Roberto Civita, dono da publicação e presidente do grupo Abril – e o contraventor Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira, preso em fevereiro deste ano sob a acusação de chefiar uma quadrilha de exploração de jogos com máquinas caça-níqueis no estado de Goiás.
Mirando o PT e os partidos aliados, a publicação sempre foi ferrenha opositora à chefia do governo federal e revelou casos e mais casos de corrupção, incluindo o esquema conhecido como “Mensalão”. Nem todos, diga-se de passagem, foram baseados em provas contundentes, mas reverberam no mundo jornalístico e tiveram um forte apelo eleitoral entre setores da classe média brasileira, leitora do semanário.
A Operação Monte Carlo, para além de elucidar a proximidade do senador Demóstenes Torres, trouxe também outras indagações, jogando luz a outros atores de Brasília. Indicam que por trás de diversos furos da revista Veja está o bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Relação antiga
O contraventor teve notabilidade por encomendar a gravação em que aparece pagando propina a Waldomiro Diniz em 2002, quando este era presidente da Loterj, estatal de loterias do estado do Rio de Janeiro. Waldomiro era subchefe de gabinete da Casa Civil em 2004, quando a negociata veio à tona, e respondia pela acusação de propiciar vantagens na renovação de contrato entre a Caixa Econômica Federal e a transnacional de processamentos de loteria Gtech.
Auxiliado por braços-direitos como o ex-funcionário da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), Jairo Martins, Cachoeira prestava uma ajuda fundamental a Veja, ao solicitar gravações que comprometiam adversários e repassá-las para Policarpo com exclusividade. “A gente tem que trabalhar com ele [o Policarpo] em grupo. Porque os grandes furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz”, revela o próprio bicheiro durante uma conversa com Jairo gravada pela Polícia Federal.
“Policarpo mantinha uma relação promíscua com Cachoeira, uma fonte claramente não confiável, interessada em usar a revista para os seus interesses pessoais”, analisa o especialista em mídia e professor de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, Laurindo Leal Filho. “Essa relação permitia benefícios dos dois lados: de um lado, Cachoeira querendo através da Veja atacar os seus inimigos. Do outro, a revista, por meio dele, atacava setores do governo do qual fazia oposição”, complementa.
Demóstenes
Um forte interlocutor entre os dois grupos era o senador Demóstenes Torres (ex-DEM/GO, atualmente sem partido) que, conforme revelou a PF, mantinha relações próximas com Cachoeira, e é acusado de usar o mandato para favorecer os interesses do bicheiro. Demóstenes, que ficou conhecido como um defensor da moral na política e foi o relator do projeto de lei Ficha Limpa, era fonte importante semanário.
Desde que os conteúdos das gravações foram divulgados e revelado o esquema de vantagens de Cachoeira com Demóstenes e o governo de Goiás, a revista Veja dedicou poucas linhas para tratar do assunto, em clara contraposição ao posicionamento adotado em outros casos de corrupção. Nas últimas seis edições da revista, nenhuma capa tratou do tema. Assuntos como o mistério do Santo Sudário, jovens inovadores do mercado e as leis da atração amorosa, por exemplo, foram considerados mais importantes.
Para o deputado federal Chico Alencar (Psol/RJ), uma CPI no Congresso Nacional que investigue as relações entre mídia e poder pode ser muito pedagógica à população. “O Demóstenes era uma grande fonte da mídia, ele foi preservado até quando foi possível. O próprio Cachoeira conhecia muito bem esse mundo da política, engabelava com uns, negociava com outros, e informava terceiros. Então ele era também uma fonte importante de uma imprensa que jogava com as notícias de acordo com o seu interesse. Uma CPI pode desvendar todas essas relações e como há vínculos entre a política dominante e mídia dominante”, afirma Alencar. O partido dele já protocolou um pedido de abertura de processo no Conselho de Ética do Senado para investigar a possível quebra de decoro parlamentar pelo senador Demóstenes.
Encomenda
A relação entre Policarpo e Cachoeira data de pelo menos 2004, quando o contraventor era investigado pela prática do jogo ilegal pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, por meio de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito). Na época, Policarpo assinou a matéria Sujeira para todo lado, em que repercutia a proposta de compra de votos de parlamentares da CPI por meio de propinas oferecidas por auxiliares de Cachoeira. Detalhe importante é que as gravações das propostas foram feitas pelos próprios auxiliares do bicheiro e entregues à revista. Serviram fundamentalmente para desmoralizar a investigação.
Em 2005, Jairo foi responsável por entregar a Policarpo a fita que mostrava o então diretor da ECT (Empresa de Correios e Telégrafos), Maurício Marinho, recebendo uma propina de R$ 3 mil e cujo fato foi o primeiro do escândalo Mensalão. Segundo o jornalista Luis Nassif, a ação foi encomendada pelo lobbista Arthur Wascheck, apresentado a Jairo por Cachoeira.
Com a queda de Marinho, Wascheck assumiu o controle da corrupção nos Correios. A máfia foi responsável por fraudes que resultaram no desvio de dezenas de milhões de reais e foi desvelada a partir da Operação Selo da Polícia Federal em 2007. Cinco pessoas foram presas: os funcionários dos Correios, Sérgio Dias e Luiz Carlos de Oliveira Garritano, e os empresários Antônio Félix Teixeira, Marco Antônio Bulhões e Arthur Wascheck, considerado o líder do esquema.
Em entrevista dada ao jornal Correio Braziliense, o delegado Daniel França, que fazia parte do grupo de investigação, resumiu assim o esquema de corrupção mantido nos Correios: “Havia uma quadrilha na ECT, que foi desbaratada e afastada. A outra organização tomou o lugar dela. Assim como os traficantes fazem, quando saem, morrem ou são presos, acontece a mesma coisa no serviço público. Quando uma quadrilha sai, entra outra e começa a praticar atos ilícitos”.
Parceria
Sobretudo no caso de agora o posicionamento da Veja chamou a atenção para uma questão fundamental no que se refere ao exercício do jornalismo: o padrão do relacionamento entre o jornalista e sua fonte. O próprio Cachoeira avaliou a relação mantida com Policarpo como uma troca de interesses. Na mesma conversa com Jairo ele diz: “O Policarpo não faz favor pra ninguém e muito menos pra você. Não se iluda, não. (…) Com ele tem que ser uma troca. Não pode dar as coisas pra ele, igual você sai correndo pra fazer um favor pra ele, pega e dá de graça (…) E eu também não trabalho pro Policarpo. Eu já ajudei ele demais da conta. Entendeu? Demais da conta! Então, quando eu falo pra você é porque tem que trabalhar em grupo. Tudo o que for, se ele pedir alguma informação, você tem que passar pra mim as informações, uai”.
De acordo com o professor Laurindo Leal, não há nessa relação um compromisso primordial com o interesse público, como deveria ser. “A Veja não tem muito escrúpulo de buscar qualquer tipo de fonte que se alinhe ao objetivo dela, há uma linha editorial que vai buscar em evidências frágeis informações que sustentem essa linha política”, avalia.
O jornalista da revista Carta Capital Leandro Fortes também critica o posicionamento da Veja na relação mantida com Carlos Cachoeira e nos furos que deu. “Uma coisa é pegar grampo da PF e divulgar. Outra coisa é você utilizar produto de um crime, que é grampo ilegal feito por arapongas clandestinos, que é o caso do esquema do Cachoeira. Há um descolamento da ética na imprensa, virou um vale-tudo”, destaca.
Por uma situação inescrupulosa entre jornalista e fonte, o centenário tablóide inglês News of the World, de Rupert Murdoch, foi fechado no ano passado depois de ser revelada uma associação direta entre jornalistas e a polícia investigativa da Inglaterra – a Scotland Yard, que dava informações exclusivas ao periódico em troca de dinheiro. No caso brasileiro, segundo Laurindo Leal, a concentração dos meios de comunicação e a falta de órgãos reguladores são entraves para que uma investigação mais séria nesse sentido possa acontecer.
Aline Scarso, para o jornal Brasil de Fato
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